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Solitária racial: quando a heteroidentificação erra o alvo

Solitária racial: quando a heteroidentificação erra o alvo

Esta coluna reflete sobre a identidade “parda”, a ideia de “passabilidade” e o “não-lugar”. A partir do projeto Degradê e de vivências, inclusive a reprovação de sua esposa em banca de heteroidentificação, critíca comissões mal formadas e a “assimetria do reconhecimento”: pardos sofrem o racismo, mas perdem o direito. Defende a categoria política “negro” (pretos e pardos) contra cisões como a “parditude” e pede reformar bancas e aperfeiçoar as cotas, sem abrir mão da união e disputar direitos.

Esta é mais uma coluna no “Nó de Rede”.

Já começo pedindo desculpas porque o texto é grande, é enorme; Pensei em publicar em formato de série semanal, mas se o bicho tá aí, a gente atava de uma vezada só, né não?

Quero falar de um tema que, por muito tempo, me atravessou indiretamente: a identidade parda.

Cresci cercado de pessoas pardas. Meu pai, familiares próximos e, em algum momento da infância, cheguei a desejar ter a pele mais clara, achando que isso me daria a tal da “passabilidade”.

Não deu para ficar pardo. Então aprendi a conviver com o meu tom de pele e segui em frente.

Mas a situação do pardo sempre me trouxe curiosidade; meu pai dizia, com orgulho, que não era preto: era “pardo de cabelo carapinha”, pois era o que constava na certidão de nascimento dele. Na minha, por outro lado, havia apenas um traço azul no lugar da raça/cor.

Cresci observando.

Dessa inquietação nasceu a ideia do projeto “Degradè”: ouvir mulheres negras, retintas e pardas, para entender como o racismo atravessa cada trajetória a partir da cor da pele. As retintas, em geral, reconheciam violências duras; em outras situações, essas violências apareciam naturalizadas.

Já os relatos de mulheres pardas traziam, com força, o “não-lugar”: não se veem como brancas, tampouco são reconhecidas como pretas; a tal passabilidade, às vezes, ameniza; em outros momentos, apenas confunde e isola. Precisamos entender que a passabilidade não é privilégio pleno, é um escudo frágil, que quebra dependendo do contexto.

20280909-Pardo-02-1024x576 Solitária racial: quando a heteroidentificação erra o alvo

A sociedade raramente discute isso com profundidade, porque tudo é jogado no guarda-chuva “negro”, sem observar nuances de cor, gênero, território e classe; ao mesmo tempo, o guarda-chuva”negro” foi construído para acolher pretos e pardos.

Por isso essas angústias precisam ser discutidas, sem provocar cisão. A categoria “negro” é uma estratégia de coalizão, não de apagameento.

Passei a ouvir mais, ler mais, assistir a entrevistas, provocar conversas, debates e até mesmo ouvir podcasts, como as conversas do Mano Brown com o Dr Dráuzio Varela, por exemplo, e isso foi marcando minha cabeça.

Mano Brown sempre teve uma questão com a identidade racial dele: o ser pardo.

No podcast Mano a Mano, do qual Mano Brown é o apresentador, em uma conversa com a jornalista Flávia Oliveira, ela o chamou de “quase branco”. Isso, na hora, desestabilizou o apresentador, que a todo momento voltava ao assunto.


[Flávia Oliveira] “[…] cresci […] sob essa imposição do embranquecimento com um pai de pele clara, ou branco, ou quase branco, né?”
[Mano Brown] “O que é um quase branco, mais ou menos?”
[Flávia Oliveira] “Tipo assim, você. […] Você, minha filha.”
[…]
[Mano Brown] “Não tenho culpa das escolhas da minha mãe”.

 

Na Universidade Federal Fluminense, no doutorado em Educação, tive uma aula com um professor convidado, Rodrigo Ednilson, que pesquisa o tema das bancas de heteroidentificação nas universidades públicas.

Para ele, “se a pessoa se reconhece como parda, mas não é vista socialmente como negra, provavelmente não reúne os requisitos para tomar posse de uma política destinada a pessoas negras”.

Aí eu te pergunto: “Mas o que é negro, senão a junção de pretos e pardos?”

Ele continua: “A banca avalia se o candidato é pessoa negra — destinatária da política dirigida a pessoas negras.”

Ou seja, a banca avalia se você é “negro o suficiente” para usufruir de um direito conquistado pela luta histórica de pretos e pardos, mas muita gente acaba não conseguindo acessar esse direito, mesmo sendo alvo de racismo.

É como me disseram: os pardos entram nas estatísticas de violência, pois tem os números necessários para conquistar políticas públicas, mas não usufruem dessas políticas; ou seja, somam na hora da dor, falta na hora do direito.

O professor Ednilson nos diz que “as comissões de heteroidentificação são colegiados instituídos para identificar o conjunto de características fenotípicas — ou seja, não fazer avaliação de características isoladas; não procurar ‘marcas’ da miscigenação, a fim de responder à pergunta: ‘Esta pessoa é alvo potencial do racismo antinegro na sociedade brasileira?’ e então afirmar: ‘Nós lemos você como pessoa negra’. Ou não.”

Acontece que, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, há relatos de bancas formadas quase integralmente por pessoas brancas, sem atuação consolidada em temas raciais.

Ouvi isso da boca de um professor de lá: “Na pandemia, recebi uma mensagem me convocando para uma banca de heteroidentificação. Eu não sabia o que estava fazendo. Achei que teríamos um treinamento, mas não. Estávamos eu e outros componentes da banca na sala virtual; de repente entrou uma moça, falou alguma coisa. Tiraram a moça da sala e a banca ficou inerte, sem saber o que fazer. Então um disse que achava que era parda e os outros foram na onda.”

A realidade narrada nesse episódio é bem diferente do que descreve o professor Rodrigo Ednilson como parâmetro ideal.

O professor Rodrigo Ednilson é autor do livro Quem quer (pode) ser negro no Brasil?” (vale muito a pensa a leitura).

Esse debate voltou à minha vida quando acompanhei de perto o processo de cotas. Minha esposa, Fernanda Rocha, estudou no Curso Popular Enraizados, fez ENEM e passou para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, no curso de História.

Passou com nota que permitiria a entrada pela ampla concorrência, mas ela optou por ingressar pelas cotas que, por lei, contemplam pretos e pardos.

É importante lembrar: a própria política de cotas nasce da força numérica e política de pretos e pardos articulados sob a categoria “negro”.

Contudo, muitos brancos começaram a burlar a lei de cotas para ingressar de forma fraudulenta na universidade; e não em cursos de pedagogia, serviço social ou história (sem desmerecer esses cursos tão necessários), mas especialmente medicina, odontologia e outras áreas associadas a elites brancas.

Para coibir essas fraudes, criaram-se as bancas de heteroidentificação. Na prática, porém, encontramos alguns problemas, como relatado anteriormente: muitas bancas são formadas por pessoas unanimemente brancas, sem estudo consistente de questões raciais e afro-brasileiras. São elas que decidem se você é preto ou “pardo o suficiente”, decisões que podem ferir identidades e biografias.

Foi o que aconteceu com a Fernanda.

A história foi a seguinte.

No caso da Rural, ao chegarmos à universidade, próximo à sala onde seria realizada a heteroidentificação, a pessoa da recepção, que teoricamente estava ali para acolher, já avisava: “quem não for retinto será reprovado; as cotas são só para pretos”.

Dito e feito. Ela foi reprovada, recorreu e foi reprovada novamente. Mesmo assim, a matrícula aparecia ativa; imaginamos que seria realocada para ampla concorrência, mas não: quando você é reprovado na UFRRJ, fica marcado como se fosse fraudador.

Muitos outros casos aconteceram e continuam acontecendo.

Três ou quatro meses depois, já integrada à turma, ela foi expulsa. Procuramos um advogado para nos ajudar a conseguir um “mandado de segurança” para ela continuar os estudos na mesma turma, mas o processo demorou.

Ela saiu da faculdade, voltou ao Curso Popular Enraizados, prestou o vestibular novamente pela ampla concorrência, foi chamada e retornou à universidade.

No seu primeiro dia de aula, carregando a marca de uma “identidade negada” (forçada pela universidade a assumir uma identidade nova, não-preta, não-branca e não-parda), após uma discussão em sala, com o professor, sobre movimentos sociais, alguns alunos da turma começaram a enviar frases preconceituosas e com deboches no grupo: “sempre um pardo…”, “É militante? Mas veja se pelo menos é inteligente”, e outras provocações, sem saber que ela já estava no grupo.

Muitos nessa turma de História são jovens negros retintos. Ou seja, estudantes negros debochando de uma colega parda. Sim, dessa vez ela foi “reconhecida” como parda pelos estudantes pretos, e como branca pela banca branca.

Talvez ela tenha sido reconhecida como “não preta”, “não parda o suficiente para receber o benefício/direito da cota”, e também “não branca”. Ou seja, foi colocada no famoso “não lugar”, o que eu chamo de “solitária racial“.

O não-lugar não é identidade, é um estado de exclusão.

Em todo o Brasil começaram a aparecer denúncias de que somente os pretos retintos estavam passando pela banca de heteroidentificação; o restante era reprovado em massa.

20250908-Materia-01 Solitária racial: quando a heteroidentificação erra o alvo

A quem interessa essa cisão entre pretos e pardos?

Tenho visto ganhar destaque, nas redes sociais, uma discussão do termo “parditude”. Na minha leitura, essa ideia, cunhada pela estudante Beatriz Bueno, separa mais do que aproxima e oferece mais desvantagens do que vantagens para nós, ainda que aponte dores reais das pessoas pardas.

Não nego essas dores, elas existem e precisam ser ditas. O que me preocupa é quando se transforma a nuance em fratura, apagando que “negro” é justamente a categoria política que inclui pretos retintos e pardos, articulando força numérica e moral para enfrentar o racismo estrutural.

Volto à pergunta: quem ganha quando pretos e pardos se enfrentam?

Certamente não somos nós. A experiência racial é diversa, a dor tem gradações e contextos, mas a estratégia que nos trouxe até aqui foi a de construir pontes entre retintos e pardos, não muros.

Enquanto barram pardos e pardas de entrarem cursos como pedagogia e história, criando uma briga entre ambos e uma espécie de nuvem de fumaça, brancos continuam fraudando a lei de cotas para entrarem em cursos de alto prestígio, como medicina.

20250908-Materia-02 Solitária racial: quando a heteroidentificação erra o alvo
https://www.cartacapital.com.br/educacao/estudante-que-fraudou-cota-racial-tera-que-indenizar-universidade-decide-justica-do-rio/

Se a banca fere, que se reforme a banca.

Se a política falha, que se aperfeiçoe a política.

Mas que a gente não entregue, por cansaço ou desorientação, o que só conseguimos juntos.

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Dudu de Morro Agudo é rapper, educador popular e doutor em Educação. Fundador do Instituto Enraizados, é referência na articulação entre hip hop, formação políticas. Criador da metodologia RapLab, já levou seu trabalho para escolas no Brasil, França e nos Estados Unidos, e apresentou pesquisas em eventos internacionais. Com discos, livros e documentários no currículo, sua trajetória conecta arte, educação e transformação social a partir de Morro Agudo, Nova Iguaçu.

1 comentário

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Samuca Azevedo

Avançamos em muitos quesitos,
porém…
estamos a passos lentos em outros.
Uma mudança nas estruturas internas , se faz urgente !!

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