“Pecado”, nova música de Dudu de Morro Agudo e Aclor, é batida doce e recado azedo
Na coluna de hoje falo de “Pecado”, música que compus com a Aclor para o Projeto Híbrido, da Beth Gomes, produzido pelo Átomo Pseudopoeta, com identidade visual do Gustavo Baltar — que, no nosso caso, também assina o instrumental. Outras pessoas também participaram do projeto, que segundo os produtores era para realizar parcerias improváveis.
Participaram também os músicos Décio Cavaquinho e Mombar, Lisa Castro, Dudu Neves, Átomo Pseudopoeta e o grupo Crioula, representado por Glass e Nathalia.
Vou contar como aceitei o convite, como escrevemos e por que essa faixa soa dançante enquanto morde as canelas de quem escuta.
Era uma segunda-feira comum: obra em casa, correria para arrumar dinheiro e pagar o pedreiro, agenda entupida. No meio desse caos, o Átomo me liga e convida para o projeto. A proposta: criar uma música com a Aclor, em um beat do Baltar.
“Ele te manda um catálogo de bases, escolhe a que te interessar.”, disse o Átomo.
Como bom cavalheiro, sugeri que a Aclor escolhesse. Como boa jovem, ela jogou a bola de volta. Aí fiz o que mais gosto: peguei o beat mais distante do nosso conforto — e nasceu o desafio.
A gravação seria na quinta. Tempo curto, assunto grande. Propus à Aclor que escrevêssemos sobre traumas, saúde mental, fissuras que a vida adulta esconde debaixo do tapete. Mandei um trecho de letra; ela devolveu um blocão que trazia a palavra “pecado” no centro. Eu também já tateava esse tema, não pelo viés moralista, mas pelo atrito com a religiosidade que tenta administrar nossos afetos.
Vou te fazer um convite: ouça “Pecado”, antes de continuar a leitura. A leitura melhora com a batida na cabeça.
A música abre leve, quase solar, pedindo pista. Mas por baixo da luz tem um pedido de socorro: desacelerar é urgente.
Vamos dar um rolé pelas linhas da música pecado?
O verso “despique de atleta, olhei pra aquela reta, mas eu não preciso ir” explicita a recusa: não vou performar produtividade para caber em regra que me adoece. Quando o corpo diz “pare”, ignorá-lo é uma forma silenciosa de autoagressão.
No meu bloco afirmo: “sou sumo de sequela, não sigo mais as regras, foi desse jeito que venci”. É reconhecer que a meu corpo sofreu tantos traumas que esses traumas já fazem parte de mim. Eles me quebraram, mas também me ensinaram a mapear padrões que nos adoecem.
Cito ainda “os preto não amarela” — gíria que, aqui, abre camadas: cor e raça, sim, mas também a teimosia de não fugir da luta, em contraste com espaços onde a diversidade segue barrada por barreiras econômicas e culturais. A saúde mental não se trata sem falar de onde cada um parte: classe, raça, território e gênero são linhas de força que atravessam o humor do dia.
Em “faço rimas e reparações com intuito de evoluir, estrago climas e trago questões que não vão deixar você dormir”, o rap cumpre seu papel: perturbar, compartilhar saberes, instalar perguntas. O verso nasceu de um episódio de constrangimento pedagógico: numa roda com muitos jovens negros, uma mulher evidentemente branca se autodescreveu “morena”; logo depois, uma mulher preta retrucou dizendo ser “branca de pele amarronzada”. O desconforto não é acidente — é ferramenta. Há incômodos que educam mais do que mil oficinas de sensibilização.
Quando digo que “tem sons que não são pra tu ouvir”, o duplo sentido é proposital: há músicas que não conversam com todo mundo — e há sons que ninguém deveria ouvir, como tiros. Alguns sons nos deslocam, e esse estranhamento também é aula.
A letra cutuca outro nervo: o fogo amigo. Gente que se diz do hip-hop, antirracista, feminista — mas só cola quando tem ganho individual. Esse comportamento intoxica a saúde mental coletiva, porque reforça a lógica do cada-um-por-si que o neoliberalismo espalha inclusive nas periferias. Movimento que não cuida de gente vira marca; causa sem cuidado vira campanha. Certo ou errado?
Outro eixo é a culpabilização da juventude pobre. O Estado não garante condições mínimas para que famílias cuidem de seus filhos; quando muito, pais e mães se ausentam para trabalhar, ou enfrentam violência e vícios. Crianças crescem em ambientes hostis e, na sobrevivência, erram: roubam para comer ou para “parecer ter”. A resposta social costuma ser punitiva — “redução da maioridade penal” — uma contradição de um capitalismo que naturaliza a desigualdade e terceiriza a culpa. Sem política pública consistente, a moral vira espetáculo e a punição, entretenimento.
Na parte técnica, a gente diversificou flow e trouxe o contraste como estética.
A batida dançante é tática. O som entra macio para a mensagem atravessar. É o “sinal errado de propósito”: parece festa; é crônica social. O refrão resume: “Se o som tem gosto de pecado, é o tom que tá errado. Esse recado tá azedo.” Azedo para lembrar que açúcar demais anestesia.
A entrada da Aclor reforça o desenho: “O mundo é cruel, te vendem o céu, te entregam o inferno”. O alvo é a promessa vazia: segurança, dignidade, educação — e a entrega do avesso. Ela escreve “costumo pecar, me permito amar sem esconder sentimentos” e chama Jah para a conversa, deslocando a hegemonia religiosa que transforma prazer em culpa. Quando a mulher negra reivindica o direito ao prazer, ela pratica política do corpo contra séculos de tutela moral.
“Mas já decidi por mim. Nesse mundo eu vou ter que voar.” Voar aqui não é metáfora fofinha: é estratégia de fuga. Para mulheres negras, correr não basta; é preciso sobrevoar os predadores — com a benção, a sorte e a coragem de quem sabe que pouso seguro é raro.
Voltamos ao início: ser “sumo de sequela” é aceitar que todos somos atravessados por feridas sociais; algumas sangram mais, outras cicatrizam tortas, quase sempre na linha da classe. Importa reconhecer gatilhos e convertê-los em força coletiva. Cuidar de si não é oposto de cuidar do mundo: é condição para que a luta não nos coma por dentro.
No fim, “Pecado”, palavra que virou título da música por que Aclor gostou desde o início do nosso encontro, veste ironia e groove para discutir saúde mental, desigualdade e as contradições de um tempo que nos cobra performance e entrega burnout.
O beat chama o corpo; a letra chama a responsabilidade.
Fica o aviso do refrão, para quem quiser dançar pensando: se o som te chama pra pecar, talvez seja o tom do mundo que esteja errado — e é por isso que o recado segue azedo.
LETRA PECADO
Desacelerar, essa é a meta
Já liguei a seta, mas só vou diminuir
Despique de atleta
olhei pra aquela reta, mas só que eu não preciso ir
Sou sumo de sequela
Não sigo mais as regras, foi desse jeito que venci
Os preto não amarela
Se o mundo é uma aquarela, tá faltando umas cor aqui
Faço rimas e reparações
Com o intuito de evoluir
Estrago climas e trago questões
Que não vão deixar você dormir
Tem sons que não são pra tu ouvir
Tensões que te fazer ir ou vir
Sua dicção já me faz sorrir
Uns que diz que são, mas não são daqui
No fim é um pra cada lado
Procura-se um culpado
Aquele que errou mais cedo
Se o som tem gosto de pecado
É o tom que tá errado
Esse recado tá azedo
No fim é um pra cada lado
Procura-se um culpado
Aquele que errou mais cedo
Se o som tem gosto de pecado
É o tom que tá errado
Essa maldade vem de berço
[Aclor]
O mundo é cruel, te vendem o céu, te entregam o inferno
Consomem tua mente, te tiram o sono, já não sei ao certo
Eu costumo pecar, me permito amar sem esconder sentimentos
E seja o que for o destino é escrito por Jah
Mas já decidi por mim, nesse mundo eu vou ter que voar
Dinheiro é papel, abraço é tesouro e …
E seja o que for o destino é escrito por Jah
Mas já decidi por mim, nesse mundo eu vou ter que voar
Sou sumo de sequela
Não sigo mais as regras, foi desse jeito que venci
Os preto não amarela
Se o mundo é uma aquarela, tá faltando umas cor aqui
[Dudu]
Sou sumo de sequela
Não sigo mais as regras, foi desse jeito que venci
Os preto não amarela
Se o mundo é uma aquarela, tá faltando umas cor aqui
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