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A novela interminável: “Serra em chamas”

Serra de Madureira: Visita guiada com o Instituto EAE.

A novela interminável: “Serra em chamas”

Há tragédias que se repetem tanto que já parecem tradição. O que vem acontecendo com a Serra do Vulcão, em Nova Iguaçu, é uma delas.

Um cartão-postal condenado ao fogo, uma paisagem queimada pela ignorância e pela omissão. Todo ano, o mesmo roteiro: a mata pega fogo, o verde vira cinza, a fumaça sobe e o poder público finge que está tudo bem … até o próximo incêndio.

A Serra, que poderia ser referência em educação ambiental, turismo ecológico e orgulho da cidade, hoje é um símbolo do abandono. Um espaço que grita por planejamento, fiscalização e investimento, mas recebe apenas promessas vazias, placas tortas e discursos reciclados.

Há décadas, assistimos impotentes e indignados ao mesmo episódio se repetir como uma novela ruim que ninguém mais aguenta assistir: a lenta e constante destruição da Serra do Vulcão, às margens da Estrada de Madureira. Um cenário de beleza natural e potencial educativo sendo transformado, dia após dia, num retrato fiel da negligência pública e da ignorância coletiva.

O local, que poderia ser um laboratório vivo de educação ambiental, ecoturismo e preservação da biodiversidade, agoniza. Falta tudo: estrutura, fiscalização, legislação eficaz e vontade política. O que sobra é descaso.

A ausência de um plano de manejo sério e de políticas ambientais locais só reforça a ideia de que cuidar da natureza ainda é visto como “perfumaria” e “alegórico”, e não como questão de sobrevivência.

Enquanto isso, a sociedade civil tenta tapar o sol com as mãos. Grupos de voluntários resistem heroicamente, fazendo replantio, retirando lixo, educando, lutando contra o abandono. Mas a cada muda plantada, surge um incendiário disfarçado de devoto, de caçador ou de “cidadão de bem”, que reduz tudo a cinzas.

O fogo vem de todos os lados , da irresponsabilidade, da fé cega sem consciência, da especulação imobiliária e da omissão das autoridades. É o inferno geográfico do absurdo humano.

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Equipe do Instituto Enraizados durante o projeto “MEU BAIRRO, MEU AMBIENTE” na Serra do Vulcão, sob orientação do Instituto EAE.

O incêndio que começa na incompetência

Enquanto autoridades municipais/estaduais brincam de “empurra-empurra institucional”, o fogo real consome hectares de vida.

Não há plano de manejo, guarda ambiental estruturada ou política pública consistente. Há apenas um exército de voluntários , gente simples, de coragem e consciência que replantam árvores e recolhem lixo com as próprias mãos.

Mas basta um sopro de vento e um fósforo aceso por um “iluminado” qualquer, e todo o trabalho vira cinza.

E a tragédia se repete: papéis queimados em rituais religiosos se espalham com o vento, garrafas quebradas viram lentes incendiárias, e o verde que ainda resiste vira fumaça.

A Serra que poderia ensinar sustentabilidade, hoje ensina sobre a estupidez humana..

Eu mesmo presenciei e participei (sem nenhum equipamento, só a vontade e minha chinela) de um combate a um incêndio durante uma atividade cultural onde participava.

Ali pude ver e sentir o que a galera que faz o enfrentamento às chamas vive em tempo real.

Os culpados ?

O poder público, por sua incompetência crônica em planejar, fiscalizar e proteger o patrimônio ambiental.

Os incendiários voluntários e involuntários, que transformam fé, diversão ou lucro em destruição.

São os chamados: “devotos incendiários”, aqueles que vão à mata orar e deixam o rastro do pecado ambiental: velas, papéis queimados e restos de oferendas que, levados pelo vento, viram chamas.

A fé é livre, mas o fogo não é sagrado, é criminoso, Pois é … meus amigos, a ignorância travestida de religiosidade também queima.

E nós, como sociedade, assistimos, filmamos, comentamos e raramente agimos.

As soluções ?

20221119-Trilha-Sonora-Serra-do-Vulcao-_Nova-Iguacu3-1024x768 A novela interminável: "Serra  em chamas"

Não há milagres : há trabalho e coragem.

1. Criação urgente de um plano de manejo ambiental com fiscalização efetiva, guardas ambientais e punições exemplares.

2. Campanhas educativas contínuas, principalmente junto a grupos religiosos e moradores do entorno.

3. Transformar a Serra do Vulcão em um polo de educação ambiental, com trilhas guiadas, viveiros, oficinas e parcerias com escolas.

4. Projetos de reflorestamento comunitário, com acompanhamento técnico e apoio financeiro público e privado.

O problema é antigo, mas o culpado tem nome e endereço:

O poder público, por sua covardia administrativa.

Os incendiários reincidentes, sejam eles por fé, descuido ou maldade.

Os especuladores imobiliários, que sonham em transformar mata queimada em loteamento.

E nós, cidadãos que só acordamos quando o cheiro de fumaça invade a sala e o horizonte vira cinza.

Dá pra mudar o roteiro. Dá pra transformar a Serra do Vulcão num laboratório vivo de educação ambiental, com trilhas guiadas, viveiros, oficinas e programas de replantio monitorado.

Dá pra criar um parque ecológico modelo, que gere renda, turismo e consciência.

Mas, para isso, é preciso o que Nova Iguaçu parece ter perdido há tempos: vontade política e responsabilidade coletiva.

Porque de decreto em decreto, o verde vai sumindo.

De discurso em discurso, o fogo avança.

E de desculpa em desculpa, a Serra agoniza enquanto alguns “filhos do capeta” continuam riscando fósforos e chamando isso de fé, de diversão ou de progresso.

O problema é que, quando a Serra morre, não é só o mato que vira cinza é a dignidade da cidade inteira.

Enquanto nada disso acontece, a Serra arde, a cidade sufoca e a memória natural de Nova Iguaçu desaparece, em meio à fumaça, ao silêncio e à falta de vergonha coletiva.

A pergunta que fica é simples:
Quantas vezes mais a Serra precisará queimar até que alguém finalmente enxergue a luz em meio ao fogo?

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Samuca Azevedo é ator, diretor e produtor cultural de Nova Iguaçu. Integrou a primeira formação da Cia Encena de Teatro nos anos 1990 e foi um dos pioneiros do projeto Teatro em Sala. No Movimento Enraizados, estruturou a biblioteca e o telecentro, coordenou projetos como o Pontão de Cultura Preto Ghóez e o Projovem Adolescente, além de organizar oficinas, debates e eventos. Hoje, como presidente do Instituto Enraizados, articula ações culturais, educativas e comunitárias na Baixada Fluminense.

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